sábado, 20 de junho de 2009

O SISTEMA ESTATAL E A ELITE DO ESTADO ( RESUMO)

Fernando Henrique Cardoso
Carlos Estevam Martins
Política e Sociedade
volume 1
2º edição. Companhia Editora Nacional.
O sistema.


RALPH MILIBAND
O SISTEMA ESTATAL
"O que o "Estado" representa é um certo número de instituições, as quais, juntas, constituem a sua realidade e agem entre si como partes integrantes do que podemos chamar de sistema estatal".
O enfoque de uma parte do Estado-geralmente o governo- como sendo o Estado em si, apresenta um elemento importante de confusão na discussão da natureza e incidência do poder do Estado.
Não é de espantar que governo e Estado amiúde sejam tomados como sinônimos. Pois é o governo que fala em nome do Estado. Era o Estado que Weber se referia ao dizer, numa frase famosa: para existir, ele deve " reivindicar com êxito o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um dado território". Mas o "Estado" não pode exigir nada.: somente o governo constituído, ou os seus representantes legalmente empossados, podem fazê-lo. Os homens, como se costuma dizer, dão seu apoio não ao governo, mas sim ao Estado. Porém, o Estado deste ponto de vista, é uma entidade nebulosa; e, embora os homens possam preferir dar seu apoio a ele, é um desafio ao Estado, em cujo nome somente o governo pode falar e por cujas ações deve assumir total responsabilidade".
[...] o fato de o governo falar em nome do Estado e estar oficialmente investido ao poder estatal não quer dizer que ele efetivamente controle esse poder. Até que ponto os governos realmente controlam o poder é uma das principais questões a serem esclarecidas.
Um outro elemento do sistema estatal que requer investigação é o administrativo, que agora se entende muito além da tradicional burocracia do Estado, abrangendo uma grande variedade de órgãos, geralmente ligados a determinadas repartições ministeriais, ou que gozam de maior ou menor grau de autonomia- e responsáveis pela supervisão admministrativa das atividades econômicas, sociais, culturais e outra atividades nas quais o Estado está direta ou indiretamente envolvido.
[...] o processo admistrativo também faz parte do processo político; a administração sempre é política, bem como executiva, pelo menos nos níveis em que o processo decisório é importante, ou seja, nas camadas superiores da vida administrativa.
[...] considerações, atitudes e suposições de ordem política são incluídas, conscientemente ou não, " problemas admistrativos " e , por sua vez, afetam a natureza das recomendações e das ações administrativa. [...] O poder que funcionários públicos categorizados e outros administradores oficiais possuem, em parte alguma eeses homens deixam de contribuir direta e substancialmente do exercício do poder estatal. Se o regime for fraco, os funcionários públicos preencherão o vazio e desempenharão um papel dominante nas tomadas de decisão. [...] quando o executivo político for forte e estável os altos funcionários têm condições de desempenhar papel predominante em áreas críticas, oferecendo conselhos que os governantes geralmente acham muito dificil desprezar, de uma ou outra maneira. Por mais que se possa discutir sobre a natureza e o alcance do poder burocrático nessas sociedades, a gama de possibilidades deve excluir a idéia de que os altos funcionários civis podem ser rebaixados ao papel de simples instrumentos da política governamental. Como diz o professor Meynaud : " o estabelecimento de uma total separação entre os setores políticos e admistrativos, jamais representou muito mais que mera ficção jurídica.
Algumas dessas considerações aplicam-se a todos os demais elementos do sistema estatal. - o militar por exemplo- o setor basicamente responsável pela aplicação da violência.
Na maioria dos países capitalistas, este aparelho coercitivo constitui um amplo, espraiado e poderoso organismo, cujos líderes profissionais são homens de status elevado e de grande influência. Desde a II grande guerra, em parte alguma a inflação da corporação militar foi mais marcante do que nos EUA. Provavelmente nunca , antes, em qualquer país capitalista, com exceção da Itália fascista e da Alemanha nazista, tanta gente tem sido empregada em cargos policias ou de repressão de qualquer espécie."
Os elementos coercitivos e admistrativos devem servir o Estado, logo o governo.Mas o setor judici[ario é independente e estão protegidos pela inviolabilidade do cargo e tem como dever proteger o cidadão contra o poder executivo e seus agentes, porém é parte integrante do sitema estatal.
As unidades subcentrais fazem a conexão periferia-centro. Funciona como tentáculos do governo e administrações centrais. Facilitando, ou não, sua influência serve tanto de voz do centro para a periferia como da periferia para o governo central. Nos regimes federativos são capazes de afetar de maneira marcante a vida das populações que governam.
"Praticamente a mesma coisa pode ser dita das assembléias representativas do capitalismo avançado. Agora, mais do que nunca, sua vida gira em torno do governo.[...] Essa relação é de conflito bem como de cooperação".
Não existe uma facção(ou partido) que possa ser sempre opositor. O fato de tomar parte no trabalho, eles já ajudam o governo. Ao entrar no parlamento são submetidos a um jogo político e joga de acordo com as regras que não são de sua livre escolha.
nem os governistas podem ser sempre subservientes.
As assembléias legislativas tem participação menos extensa mas não menos importante. Constitui o Estado.
"Logicamente, sistema estatal não é sinônimo de sistema político. Esse último inclui muitas instituições, como por exemplo, partidos e grupos de pressão todos de grande importância no processo político e que afetam vitalmente o funcionamento do sistema estatal".
Os donos do poder são os agentes do poder econômico privado e por isso mesmo são a classe dominante.
Super influências do capitalismo, e seus representantes na direção governamental. como dizia Karl Kautsky: " A classe capitalista dirige mas não governa" embora em seguida acrecentasse que " ela se contenta em dirigir o governo".
"Também não é o caso, mesmo em época de capitalismo avançado, de homens de negócios terem eles próprios assumido a maior parte do governo.
Max Weber achava que os industriais não tinham nem tempo nem as qualidades particulares exigidas para a vida política, e Schumpeter escreveu que " seguramente ele não possui nenhum atrativo místico que é o que vale na arte de dirigir homens". Já Cossio declarou que " ele quer que o deixem em paz e quer distância da política". Menos dramático, porém não menos taxativo, Raymond Aron declarou que acerca dos homens de negócios " eles não governam nem a Alemanha, nem a França, e nem mesmo a Inglaterra. Mas o que é característico deles como classe socialmente dominante é que, na maioria dos países, eles menos não têm desejado assumir funções políticas".
os homens de negócios acham que a visão dos políticos é irreal e que se intrometem nas questões dos que entendem o que é a vida.
" De qualquer forma, a imagem do homem de negócios, afastados das questões políticas, exagera em muito a sua relutãncia em exercer o poder político; e, igualmente, subestima o número de vezes em que o empenho tem sido bem sucedido".
"Mas o governo, de modo algum, é a única parte do sistema estatal na qual os empresários têm tido voz ativa". Uma das mais notáveis características do capitalismo avançado, sem exagero, é a sua crescente colonização das altas esferas da admistração publica".
Apesar de algumas instituições serem nacionalizadas, ou seja, retiradas das mãos capitalistas não quer dizer que estejam fora do sistema capitalista já que homens de negócios são convidados para administrá-las.
Os homens de negócios mesmo representando o setor público, não irá defender políticas contrárias ao mundo dos negócios por considerá-las medidas nocivas aos interesses nacionais.
"[...]a grande participação dos homens de negócios nas questões do Estado, é bem verdade que eles jamais constituiram, como não constituem hoje, mais do que uma minoria relativamente pequena da elite do Estado. é nesse sentido que as elites econômicas dos países capitalistas avançados não são, propriamente, uma classe "governante" .
Todavia o significado dessa relativa distância entre os homens de negócios e o sistema estatal é bastante reduzido pela composição social da elite estatal propriamente dita. Na verdade, os homens de negócios pertencem, em termos econômicos e sociais, às classes altas e média- e é também dessas classes que os membros das elites do Estado provêm em sua grande maioria.
Uma das principais razões dessa predominãncia burguesa nas instituições do sistema estatal já foi discutida em relação às hierarquias econômicas e sociais situadas fora do sistema: crianças nascidas de pais de classe média e alta têm possibilidade de acesso muito maior do que outras crianças ao tipo de educação e treinamento profissional que é exigido para obtenção de possições de elite no sistema estatal. Oportunidades muito desiguais de ensino também encontram reflexo no recrutamento para o serviço público, pois as qualificações que somente são adquiríveis em instituições de ensino superior são condições sine qua non para admissão.
[...] Comenta Meynaud: "De um modo geral, a seleção social para altos cargos públicos pertencem essencialmente desigual."
Se um estudante de origem humilde consegue atravessar com êxito o curso universiário, passando no exame de admissão à E.N.A (École Nationaled' Aministration e até mesmo, porque não dizer, no exame final, no qual a triagem "cultural" talvez seja ainda mais severa do que na admissão, ele não estará, contudo, no mesmo nível dos filhos de importantes famílias burguesas ou de altos funcionários do governo: o espírito de casta e as relações de familia agirão o tempo todo contra ele quando forem feitas promoções ( nos níveis mais elevados, uma promoção é mais rara do que em níveis inferiores).
Max Weber afirmava que o desenvolvimento da burocracia tendia a "eliminar os privilégios de classe, que incluem a apropriação da autoridade, bem como a ocupação de cargos numa base honorífica ou como diletantismo propiciado pela riqueza".
[...] é verdade que um processo de diluição do social ocorreu no funcionalismo público e guindou pessoas nascidas em classes humildes e, mais comumente, na classe média inferior, a posição de elite dentro do sistema estatal. [...] Trata-se, aqui, mais de um processo de "aburguesamento" dos elementos mais capazes e dinâmicos recrutados nas classes inferiores. À medida que essas pessoas sobem na hierarquia estatal, elas se tornam parte, em todos os aspectos relevantes, da classe social a qual a sua posição, renda e status lhes dao aceso. Como já foi ressaltado acerca do recutamento da classe operária para a elite econômica, esse tipo de diluiçãonão afeta de maneira significativa o do mais, tal recrutamento, fomentando a crença de que as sociedades capitalistas são dirigidas na base de "carreira aberta a quem possuir talento", encobre convenientemente, a extensão na qual elas não o são.
Dadas as hierarquis específicas da ordem social existente, é inevitável que recrutas das classes inferiores para as camadas superioresdo sistema estatal devam, pelo simples fato da sua admissão às mesmas, tornar-se parte da classe que continua a dominá-la. Para ser de outro modo, a atual admissão não teria de ser apenas grandemente ampliada: a própria ordem social teria de ser radicalmente modificada e as suas hierarquias de classe dissolvidas.
A diluição social[...], ocorre nas instituições cujo pessoal depende direta ou indiretamente de eleição, notadamente o executivo político e as assémbelaiss parlamentares. Dessa forma, elementos originários da classe trabalhadora ou da classe média inferior não raro conseguem galgar postos de gabinete nos países de capitalismo avançado.
[...] deve ser resslatado que homens oriundos das classes mais baixas jamais constituiriam mais do que uma pequena minoria dos que conseguiram chegar a altos postos políticos em seus países: a grande maioria sempre pertenceu, por origem social e ocupação anterior, às classes alta e média.
[...] Em termos de classe a política nacional continua sendo uma "atividade" na qual as classes inferiores t~em desempenhado um papel claramente secundário.
O que as provas mostram conclusivamente é que, em termos de origem social, cultural e situação de classe, os homens que ocupam todos os cargos de mando no sistema estatal foram, em sua maioria, e em muitos casos esmagadora maioria, extraídos do mundo dos negocios e da propriedade, ou dentre os profissionais de classe média. [...] Numa época em que tanto se fala de democracia, iguladade, mobilidade social, nivelamento de classes e tudo o mais, um fato permanece fundamental nos países de capitalismo avançado: o de que a grande maioria dos homens e mulheres nesses países tem sido governada, representada, admistrada, julgada e comandada na guerra por pessoas aliciadas em outras classes, econômica e socialmente superiores e bastante distantes daquelas que a maioria pertence.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Max Weber e Michel Foucau lt: uma análise sobre poder.

Resumo

O poder é um fenômeno que vem merecendo muitos e variados enfoques nos estudos
organizacionais da atualidade. Mas, a preocupação com este tema remonta de
datas bem antigas. Daí, dado as restrições temporais e em termos de espaço, não
nos darmos a uma descrição dos variados autores com os múltiplos olhares sobre o
poder, mas sim, centralizarmos nosso foco analítico em duas figuras principais: Max
Weber e Michel Foucault. O primeiro entendendo o fenômeno em termos de uma
materialidade, que, portanto, poderia se metamorfosear em termos de transmissão
da base de origem de uma forma a outra, sendo ela ora a tradição, ora o carisma,
ora regras impessoais e universais a certas instituições burocráticas que unidas formariam
a sociedade como um todo. O segundo, entendendo o fenômeno como uma
correlação de forças no interior de instituições de reclusão denominadas “disciplinares”,
nas quais os corpos seriam distribuídos, individualizados, adestrados, vigiados,
sancionados e examinados no intuito de aumentar suas forças produtivas a um máximo
e reduzir suas forças políticas a um mínimo. Nas palavras de Foucault: criação
de corpos dóceis.


Palavras Chaves
Poder; disciplina; Estado, Sociedade, Dominação e Foucault.
Power : an analysis by foucau ltian perspective.


Abstract

The power is a phenomenon that comes deserving many and varied focuses in the
organizations studies of the actuality. But, the preoccupation with this theme repairs
of very old dates. Thence, given the temporal restrictions and in terms of space, do
not give us to a description of the varied authors with the multiple looks on the power,
but , centralize our analytic focus in two main illustrations: Max Weber and Michel
Foucault. The first understanding the phenomenon in terms of a materiality, which,
therefore, it could if metamorphose in terms of transmission of the origin base in a
way to another, being her sometimes the tradition, sometimes the charisma, sometimes
impersonal and universal rules to some bureaucratic institutions that united
would form the society as one all. The second, understanding the phenomenon as
a forces correlation inside institutions of reclusion denominated “disciplinarians”,
in which the bodies would be distributed, individualized, trained, watched, sanctioned
and examined in desire of increasing her productive forces to a maximum and
to reduce her political forces to a minimum. In Foucault’s Words: creation of docile
bodies.

Key words
Power, Discipline, Estate, Society, Domination and Foucault.


Autores:
54
Rev. Universo Administração, v. 1, Ano 1, p. 54-64, jun./dez. 2006
Aldo Ambrózio / David Fernando Ramos 55
Rev. Universo Administração, v. 1, Ano 1, p. 54-64, jun./dez. 2006


1. Introdução.
O presente trabalho nasce com a perspectiva de levar em debate um tema bastante
estudado, mas, devido às múltiplas abordagens sob as quais tem sido tratado, recebe
as mais variadas interpretações e comentários. Assim, se escolheu o pensamento
dos dois mais importantes teóricos que se debruçaram a estudar o tema: Max Weber
e Michel Foucault.
Num primeiro momento se abordou o poder sob a perspectiva weberiana, onde foram
apresentadas as formas e modalidades de exercício que o mesmo foi captado
na visão do autor. E, num segundo momento se abordou o poder na perspectiva foucaultiana
onde foi passado em revista com um acurado grau de detalhe o exercício
do poder denominado por Foucault de disciplinar que se exerceria no interior das
instituições de reclusão as quais o autor também denomina como disciplinares.
É importante salientar que a abordagem foucaultiana não se esgota na descrição do
exercício do poder disciplinar, ele ainda abordou outra forma de exercício de poder
que denominou biopolíticas que em vez de focalizarem os corpos individuais como
alvo de exercício procurariam controlar fenômenos próprios à população para que
os mesmos entrassem no interior dos cálculos infinitesimais dos controles estatais.
Mas, como o parâmetro de comparação é a teoria weberiana de poder, não faz-se
necessária a exposição do conceito de biopolíticas por não haver homologia entre tal
descrição do exercício de poder e a apresentada por Max Weber. Destarte, o estudo
se restringe ao poder disciplinar por se tratar de tentar mostrar com ele a importância
do autor para os estudos organizacionais que foram analisadas pelo mesmo
nesta fase de sua obra.
2. Weber e a Burocracia
Max Weber ao estudar como se exerciam os processos de dominação na sociedade,
onde ele identificava como sendo o poder a probabilidade de um indivíduo impor
a sua própria vontade, dentro de uma relação social, sobre outrem, contra toda a
resistência e qualquer que fosse o fundamento desta probabilidade, identificou três
maneiras legítimas e puras (ideais) que este processo poderia se dar: Forma Tradicional;
Forma Carismática e Forma Racional Legal (Burocracia). Tal classificação fica
bem clara quando ele afirma que:
A dominação, ou seja, a probabilidade de encontrar obediência a um determinado
mandato, pode fundar-se em diversos motivos de submissão.
Pode depender diretamente de uma constelação de interesses, ou seja, de
considerações utilitárias de vantagens e inconvenientes por parte daquele
que obedece. Pode também depender de mero “costume”, do hábito cego
de um comportamento inveterado. Ou pode fundar-se finalmente, no puro
afeto, na mera inclinação pessoal do súdito (WEBER, 1989, p. 128).
Na forma tradicional a possibilidade da aceitação do exercício do poder era garantida
por rituais tradicionais que conferiam à pessoa de quem o mesmo emanava um
direito absoluto, divino e alienável somente na forma hereditária, o que fazia das leis
e ordens oriundas de sua vontade dogmas inquestionáveis e imodificáveis, dado o
caráter divino de sua origem. Como afirma o próprio Weber (1989, p. 131):
Dominação tradicional em virtude da crença na santidade das ordenações
e dos oderes senhoriais de há muito existentes. Seu tipo mais puro é o da
dominação patriarcal. A associação dominante é de caráter comunitário. O
tipo daquele que ordena é o “senhor”, e os que obedecem são “súditos”,
1 A questão da legitimidade é caracterizada por Weber como o reconhecimento,da parte de quem recebe as ordens,
da autoridade de quem as emite, ou seja, quando todos os indivíduos ou o indivíduo reconhecem e aceitam receber ordens de alguém livremente sem estarem coagidas,
conferindo-lhe poder. É importante salientar que o conceito de legitimidade no exercício dos tipos ideais de poder é central no pensamento weberiano.

2 O termo puro (ideal) se caracteriza pela não existência destes modelos teóricos na realidade, ou seja, de estes modelos serem caracterizações gerais e abstratas de fatos observados na realidade.Enquanto o quadro administrativo é formado por “servidores”. Obedece-se à pessoa em virtude de sua dignidade própria, santificada pela tradição: por fidelidade. O conteúdo das ordens está fixado pela tradição, cuja violação desconsiderada por parte do senhor poria em perigo a legitimidade do
seu próprio domínio, que repousa exclusivamente na santidade delas.
O corte temporal da vigência deste tipo específico de dominação, para Weber, se dá
durante toda a antiguidade, idade média se estendendo ainda ao período da aristocracia monárquica, onde são observadas todas as suas características constituintes e suas formas de profusão dominadora. Na forma carismática o motivo da obediência, apesar de continuar na figura de quem ela emana, não se depreende como forma de obediência de um ethos tradicional, ou seja, oriundo de uma formação social específica que lhe conferiria o estatus quo de mando, mas sim, das características imanentes à própria pessoa de quem adviria o mando, as quais Weber denominou carisma. Assim, “carisma” seriam características especiais que figurariam como uma espécie de dom divino que permitiria o encantamento dos seguidores. Pode-se observar nesta caracterização a continuidade da ligação da obediência com o sagrado/divino, mas agora, a transmissão não mais necessita de tradições ou rituais para conferir o poder de mando, mas, simplesmente de a pessoa ter ou não as características especiais materializadas na forma do carisma, ou seja, a questão é elementalmente pessoal. Ouçamos o próprio Weber (1982, p. 285) em sua caracterização:
O carisma pode ser, e decerto regularmente é, qualitativamente particularizado.
Trata-se mais de uma questão interna do que externa, e resulta
na barreira qualitativa da missão e poder do portador do carisma.[...] O
líder carismático ganha e mantém a autoridade exclusivamente provando
sua força na vida. Se quer ser profeta, deve realizar milagres; se quer ser
senhor da guerra, deve realizar feitos heróicos. Acima de tudo, porém, sua
missão divina deve ser “provada”, fazendo que todos os que se entregam
fielmente a ele se saiam bem. Se isso não acontecer, ele evidentemente
não será o mestre enviado pelos deuses.
Na forma racional legal (burocrática) há uma mutação drástica na forma como o
mando é estabelecido na sociedade. Neste tipo de dominação, a fonte de poder
(ou legitimação) migrará de efeitos sobrenaturais, divinos e pessoais e passará a
se estabelecer a partir de um conjunto de regras e preceitos impessoais aceitos pelos
participantes de uma determinada organização burocrática. Como afirma Weber
(1997, p. 129):
Obedece-se não à pessoa em virtude de seu direito próprio, mas à regra
estatuída, que estabelece ao mesmo tempo a quem e em que medida se
deve obedecer. Também quem ordena obedece, ao emitir uma ordem, a
uma regra: à “lei” ou “regulamento” de uma norma formalmente abstrata.
Podemos perceber assim, uma transmissão da legitimação (o reconhecimento da ordem
estabelecida) da pessoa de onde emanava o mando para um código normativo
que passará a prescrever tanto os atos dos subordinados como os atos dos mandatários.
O poder, na visão de Weber, assim, se desloca do corpo da pessoa que manda
para se infiltrar dentro de um código de leis e normas que são aceitos em comum
acordo tanto pelos que mandam quanto pelos que recebem ordens.
O corte temporal que estabelece o início da instauração deste tipo de dominação é o
estabelecimento do Estado Moderno e da empresa privada capitalista como afirma
Weber (1982, p. 229): “A burocracia, assim compreendida, se desenvolve plenamente
em comunidades políticas e eclesiásticas apenas no Estado moderno, e na econoAldo
Ambrózio / David Fernando Ramos 57
Rev. Universo Administração, v. 1, Ano 1, p. 54-64, jun./dez. 2006
mia privada, apenas nas mais avançadas instituições do capitalismo”.
3. Foucault e a Soc ied ade Disc iplinar
Foucault (2002) ao analisar as metamorfoses na forma de se executar as punições
na passagem do século XVI para o XVI, acabou por descobrir não uma simples nova
metodologia na forma de punir que foi substituída por um sistema de vigilância, mas
sim, uma verdadeira metamorfose na forma de se exercer o poder na sociedade
ocidental.
Foucault visualiza que no Absolutismo Monárquico o poder possuía uma física que
se encontrava fundamentada e configurada na expressão corpórea do monarca. Ou
seja, era do corpo do Monarca que irradiavam todas as formas de poder. “Este, com
sua presença ‘material e mítica’ era quem ordenava, ameaçava e punia, vingando-se
nos corpos dos condenados a serem supliciados, por insurgirem-se contra suas ordens
(ROSA, 1997, p. 233)”. Tal materialidade do poder ficava bem evidenciada nos
procedimentos do suplício, considerado por Foucault (2002) como a representação
da presença encolerizada do rei que se vingava dos infratores de suas leis, sentenciando-os à morte de rodas, forca, ao patíbulo, esquartejamento ou ao pelourinho. É importante lembrar que neste período os corpos e vidas dos súditos não lhes pertenciam, ou seja, eram em sua totalidade do monarca, e como não havia utilidade econômica forte desses corpos, o Rei fazia deles o que bem entendesse, desde que pelas cerimônias cruéis do suplício seu poder absoluto fosse mantido.
Tal materialidade de apresentação do poder começou a ser questionada em fins do
século XVI pelos reformadores do sistema judiciário que já almejavam um castigo
que não destruísse o corpo e seus elementos ao ser exercido, mas que, ao contrário
incidisse sobre a “alma” dos condenados e tivesse o objetivo maior de corrigir as
ações do corpo no intuito de torná-lo útil à sociedade em seu conjunto.
E tal mudança de direcionamento e de objeto onde incidiria a pena não poderia estar
relacionado a outro evento que a emergência da sociedade industrial em fins do
século XVII , que deixou evidente não mais o extermínio e o controle dos corpos via
rituais violentos e sangrentos, mas sim a necessidade de sua utilização no sistema
produtivo nascente. “O crescimento de uma economia capitalista fez apelo à modalidade
específica do poder disciplinar, cujas fórmulas gerais, cujos processos de
submissão das forças e dos corpos, cuja ‘anatomia política’, em uma palavra, podem
ser postos em funcionamento através de regimes políticos, de aparelhos ou de instituições
muito diversas (FOUCAULT , 2002, p. 182)”.
Foucault nesta transição identificou a transição da física do poder para a microfísica.
Ou seja, o poder se deslocou do corpo do soberano e se capilarizou nos corpos dos
súditos e, não mais no sentido de os machucar ou matar, mas sim no sentido de os
utilizar e os consumir:
Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo – ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam (FOUCAULT , 2002, p. 117).
Assim, foi constituída toda uma nova mecânica para basilar o exercício do poder que
agora possuía um novo objetivo em sua relação com os corpos dos condenados. Na
realização desse novo tido de exercício vão ser utilizados procedimentos precisos de
modo a se conseguir além da obediência/controle dos corpos, também a sua utilidade
de econômica.
O primeiro destes procedimentos a ser adotado é a distribuição espacial dos corpos.
Neste procedimento forão utilizadas quatro técnicas específicas a saber:
o enclausuramento. Que corresponde ao trancamento dos corpos em instituições
com forma arquitetural homogêneas tais como: escolas; quartéis; fábricas; hospitais;
etc; o quadriculamento. Que corresponde a individualização dos corpos no interior
das instituições supracitadas. “O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas
parcelas quanto corpos ou elementos há a repartir. [...] Importa estabelecer as
presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos” (FOUCAU
LT, 2002, p.123); as localizações funcionais. Aqui os corpos que já estão trancados e individualizados serão agora ligados a uma atividade produtiva. “É preciso ligar a distribuição dos corpos, a arrumação espacial do aparelho de produção a diversas formas de atividade na distribuição dos postos” (FOUCAULT , 2002, p. 124);
a organização do espaço em séries (hierarquia). Que corresponde a criação de
um intercâmbio entre os corpos individualizados nas técnicas anteriores traçando
nestas relações, níveis diferenciados de desenvolvimento em relação à atividade
executada onde os corpos se encontram encerrados, prescrevendo nestas
séries uma idéia de progresso de uma série a outra.
Em síntese podemos observar que este procedimento constituído por suas quatro
táticas:
[...] organizando as “celas”, os “lugares” e as “fileiras” criam espaços
complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São
espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos
individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e
indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma
melhor economia do tempo e dos gestos. São espaços mistos: reais pois
que regem a disposição de edifícios, de salas, de móveis, mas ideais, pois
projetam-se sobre essa organização caracterizações, estimativas, hierarquias.
A primeira das grandes operações da disciplina é então a constituição
de ‘quadros vivos’ que transformam as multidões confusas, inúteis ou
perigosas em multiplicidades organizadas (FOUCAULT , 2002, p. 126).
O segundo procedimento utilizado é o controle da atividade que, para se exercer utilizará de cinco técnicas: o horário. Onde a execução da atividade vai ser demarcada em minúcias temporais, ou seja, cada atividade receberá um intervalo de tempo ótimo para a sua realização de modo que se possa estabelecer um início e um fim bem especificados; a elaboração temporal do ato. Aqui uma espécie de esquema anátomo-cronológico do comportamento é estabelecido, ou seja, cada ato é decomposto em uma série de movimentos precisos que serão rigorosamente medidos em termos temporais no sentido do próprio ato ser melhorado à medida que o corpo executa a
atividade a ele direcionada; a correlação entre corpo e gesto. Corresponde a imposição de uma melhor relação entre um gesto e a atitude global do corpo, ou seja, nesta técnica o corpo é absorvido pela atividade e para melhor executá-la deverá ter bem posicionados todos os demais elementos que o compõem; a articulação corpo-objeto. Cada gesto do corpo é relacionado a uma operação do objeto que a atividade requerer para o seu perfeito desempenho. Agora quem invade o corpo é o objeto; traçando naquele inúmeras relações entre os elementos que o compõem e os elementos que compõem o próprio objeto; a utilização exaustiva. Oriunda das técnicas anteriores, aqui o corpo se vê posto diante de uma maximização de sua utilização, que à medida que se desenvolve no interior de toda a sistemática, é investida de um controle cada vez mais minucioso para que nem um segundo do tempo seja desperdiçado na operação. O terceiro procedimento é a organização das gêneses que teria como objetivo principal a acumulação do tempo no corpo. Tal procedimento se inicia com a organização das séries e a imposição nas mesmas de ritmo e continuidade para que à medida que o corpo fosse passando por elas a experiência fosse se acumulando no mesmo
de modo que uma evolução pudesse ser traçada entre uma série e outra no que
tange ao aprendizado do corpo na execução de sua referida atividade. Neste procedimento são utilizados quatro processos: divisão da duração da atividade em segmentos sucessivos ou paralelos, ou seja, uma atividade complexa é fragmentada em várias atividades mais simples; organização das seqüências segundo um esquema analítico, ou seja, depois de a atividade ser decomposta em vários segmentos de execução mais simples ela é reagregada em uma ordem específica de complexidade;
finalização dos segmentos temporais, ou seja, cada um dos segmentos nos quais
a atividade foi dividida receberá um prazo específico para o seu término;
estabelecimento de séries de séries, ou seja, são ligadas as séries de grupos
humanos divididos no interior dos espaços disciplinares às séries de funções
resultantes da fragmentação das atividades. Resultando num quadro vivo onde
é prescrito, [...] a cada um, de acordo com seu nível, sua antigüidade, seu posto, os
exercícios que lhe convém; os exercícios comuns têm um papel diferenciador
e cada diferença comporta exercícios específicos. Ao termo de cada
série, começam outras, formam uma ramificação e se subdividem por sua
vez. De maneira que cada indivíduo se encontra preso numa série temporal,
que define especificamente seu nível ou sua categoria (FOUCAU LT,
2002, p. 134).
O quarto e último procedimento é a composição das forças, onde os procedimentos
anteriores são rearticulados e postos em funcionamento por meio do exercício e do
treinamento, montando-se assim combinações entre os múltiplos procedimentos e
técnicas de modo a se conseguir a máxima utilização de todos os elementos.
Em síntese podemos demonstrar o funcionamento deste aparato fisiológico temporal
nas palavras do próprio Foucault (2002, p. 141):
[...] pode-se dizer que a disciplina produz, a partir dos corpos que controla,
quatro tipos de individualidade, ou antes uma individualidade dotada
de quatro características: é celular (pelo jogo da repartição espacial) é orgânica (pela codificação das atividades), é genérica (pela acumulação
do tempo), é combinatória (pela composição das forças). E, para tanto,
utiliza quatro grandes técnicas: constrói quadros; prescreve manobras;
impõe exercícios; enfim, para realizar a combinação das forças, organiza
“táticas”.
Descritas a mecânica do poder microfísico (disciplinar) em seu exercício no interior
das instituições disciplinares, é-nos necessário analisar ainda os procedimentos que
dinamizam tal exercício no sentido de relacionar os corpos aos procedimentos criados
pela disciplina.
Para Foucault o poder disciplinar não poderia ser desarticulado de um processo de
adestramento. “O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar
e de retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar
e se apropriar ainda mais e melhor (FOUCAU LT, 2002, p. 143)”. Este adestramento é
que seria responsável pela fabricação dos indivíduos necessários ao funcionamento
das instituições a que estivessem ligados. E, no decorrer deste adestramento, alguns
instrumentos simples e precisos seriam fundamentais no sentido da efetivação do
duplo objetivo das disciplinas: o olhar hierárquico; a sanção normalizadora e o exame.
No primeiro instrumento vemos ser construída uma pirâmide de olhares que atravessariam
de cima a baixo e de uma extensão a outra as instituições disciplinares fazendo com que nenhum gesto escapasse a essa organização óptica. Ouçamos o
próprio Foucault (2002, p. 148) A vigilância hierarquizada, contínua e funcional não é, sem dúvida, uma das grandes “invenções” técnicas do século XVII , mas sua insidiosa extensão deve sua importância às novas mecânicas de poder, que traz consigo. O poder disciplinar, graças a ela, torna-se um sistema “integrado”, ligado
do interior à economia e aos fins do dispositivo onde é exercido. Organiza- se assim como um poder múltiplo, automático e anônimo; pois, se é verdade que a vigilância repousa sobre indivíduos, seu funcionamento é de uma rede de relações de alto a baixo, mas também até um certo ponto de baixo para cima e lateralmente; uma rede “sustenta” o conjunto, e o perpassa de efeitos de poder que se apóiam uns sobre os outros: fiscais perpetuamente fiscalizados.
No segundo instrumento, a sanção normalizadora, foram dosados de forma precisa
os castigos e os benefícios de forma a criar-se uma visão clara do tipo de comportamento ideal para o funcionamento das instituições disciplinares:
Na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda uma micropenalidade
do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes “incorretas”, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo é utilizada, a título de punição, toda uma série de processos sutis, que vão do castigo físico leve a provações ligeiras e pequenas humilhações. Trata-se ao mesmo tempo de tornar penalizáveis as frações mais tênues da conduta, e de dar uma função punitiva aos elementos aparentemente indiferentes do aparelho disciplinar: levando ao extremo, que tudo possa servir para punir a mínima coisa;
que cada indivíduo se encontre preso numa universidade punível-punidora (FOUCAULT , 2002, p. 149). O terceiro instrumento, o exame, talvez seja o mais abrangente dos três por combinar os instrumentos da vigilância hierárquica e da sanção normalizadora no intuito de estar unindo através da atividade do registro que lhe é imanente os laços entre as relações de poder e a criação de um saber sob os corpos que estão sendo vigiados e punidos: [...] o exame está no centro dos processos que constituem o indivíduo como efeito e objeto do poder, como efeito e objeto do saber. É ele que, combinando vigilância hierárquica e sanção normalizadora, realiza as grandes funções disciplinares de repartição e classificação, de extração máxima
das forças e do tempo, de acumulação genética contínua, de composição
ótima das aptidões. Portanto, de fabricação da individualidade celular, orgânica, genética e combinatória. Com ele se ritualizam aquelas disciplinas que se pode caracterizar com uma palavra dizendo que são uma modalidade de poder para o qual a diferença individual é pertinente (FOUCAULT , 2002, p. 160).
Conhecidos os instrumentos que forneciam a dinâmica do exercício a partir do qual o
poder disciplinar poderia inserir-se nos corpos moldando-os, adestrando-os e melhorando-os, nos resta apreciar apenas a forma arquitetural que serviu de modelo para as instituições disciplinares. Se trata do Panóptico de Jeremy Bentham. Tal modelo de arquitetura possuía o seguinte princípio: [...] na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas tem duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um
operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre,
recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas
nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções – trancar, privar de luz e esconder – só conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha (FOUCAULT , 2002, p. 166).
A idéia central de tal aparato óptico era fornecer uma visibilidade total do lado de
quem vigiava e uma visibilidade nula do lado de quem era vigiado no sentido da idéia
de uma vigilância constante e ininterrupta cujas regras acabassem por se internalizar
nos corpos dos indivíduos que se encontravam sob processo de vigília tornar-se
uma possibilidade real aos seus olhos. Ao serem incididos por tais dispositivos de poder os corpos se desenvolviam no sentido de elevar ao máximo sua utilidade econômica e de reduzir a um mínimo sua força
política “digamos que a disciplina é o processo técnico unitário pelo qual a força do
corpo é com o mínimo ônus reduzida como força ‘política’, e maximizada como força
útil (FOUCAULT , 2002, p. 182)”, ou seja, na mais clara denominação se transformavam
em verdadeiros “corpos dóceis”.
Mas, não apenas na anatomia do corpo este processo surtiria efeitos, outro importante
desdobramento aconteceria em um nível bem mais profundo que as suas formas
físicas: Se o suplemento de poder do lado do rei provoca o desdobramento de seu corpo, o poder excedente exercido sobre o corpo submetido do condenado não suscitou um outro tipo de desdobramento: o de um incorpóreo, de uma “alma” moderna, como dizia Mably. A história dessa microfísica do poder punitivo seria então uma genealogia ou uma peça para uma genealogia da “alma” moderna. A ver nessa alma os restos reativados de uma ideologia, antes reconheceríamos nela o correlativo atual de uma certa tecnologia de poder sobre o corpo. Não se deveria dizer que a alma é uma
lusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno, na superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre osque são punidos – de uma maneira mais geral sobre os que são vigiados,treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados,sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência. Realidade histórica dessa alma, que, diferentemente da alma representada pela teologia cristã, não nasce faltosa
e merecedora de castigo, mas nasce antes de procedimentos de punição, de vigilância, de castigo e de coação. Esta alma real e incorpórea não é absolutamente substância; é o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder. Sobre essa realidade-referência, vários conceitos foram construídos e campos de análise foram demarcados: psique, subjetividade, personalidade, consciência, etc.; sobre ela técnicas e discursos científicos foram edificados; a partir dela, valorizaram-se as reivindicações morais do humanismo. Mas não devemos nos enganar: a alma, ilusão dos
ideólogos, não foi substituída por um homem real, objeto de saber, de reflexão
filosófica ou intervenção técnica. O homem de que nos falam e que nos convidam a libertar já é em si mesmo o efeito de uma sujeição bem mais profunda que ele. Uma “alma” o habita e o leva à existência, que é ela mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo(FOUCAULT , 2002, p.28).
Assim, podemos afirmar, que enquadrados, distribuídos espacialmente, individualizados, postos em relação a uma atividade, vigiados para por fim gerarem um registro que dará forma e conteúdo a diversas disciplinas de saber; os corpos, além de se tornarem dóceis e úteis, ainda produziriam um incorpóreo que possuiria nele próprio todas as regras e princípios da clausura, e este incorpóreo seria nada mais, nada menos que suas próprias subjetividades.
O tipo de sociedade que poria em funcionamento este tipo específico de poder foi
classificada por Foucault de sociedade disciplinar “na qual o comando social é construído mediante uma rede difusa de dispositivos ou aparelhos que produzem e regulam os costumes, os hábitos e as práticas produtivas (HARDT; NEGRI, 2001, p. 42)”, sendo posta em funcionamento através de instituições também classificadas por
Foucault como disciplinares (a prisão, a fábrica, o asilo, o hospital, a universidade, a escola e etc) que estruturariam o terreno social e forneceriam explicações lógicas e adequadas para a razão da disciplina (HARDT; NEGRI, 2001).

4. Conclusão
Na exposição dos pensamentos dos dois autores em relação à forma como são exercidas
as relações de poder nas sociedades ocidentais podemos notar diferenças
quanto ao método de abordagem e quanto à forma que o poder é compreendido nas
exposições de ambos.
Quanto ao método, podemos perceber que Weber trabalha com o tipo puro (ideal), ou
seja, características gerais que não existiriam na realidade, mas que derivariam de
apreciações genéricas do funcionamento das instituições e do comportamento dos
indivíduos nas mesmas. Em uma palavra: Weber teria a partir de observações consistentes
do funcionamento das instituições no decorrer do tempo sistematizado e
agrupado certos traços que poderiam assim caracterizá-las em um esquema amplo,
mas não representá-las em sua forma real, que no caso se distanciaria do modelo
proposto.
Foucault, ao contrário de Weber, partiria para a observação do que descreveu em
sua forma real, ou seja, as observações acerca do funcionamento da prisão, da fábrica,
da escola e etc, seriam em sentido lato, “o como” o poder realmente é exercido
nestas instituições e as descrições sobre os efeitos desse poder, realmente apresentariam
os resultados nos corpos dos afetos das relações de força características
deste poder.
Quanto à forma de funcionamento podemos ver em Foucault a inexistência de uma
fonte onde o poder emanaria e também uma inexistência de algo que o possuísse,
assim, como a inexistência de uma materialidade e de certa forma de uma negatividade
em seu exercício. O poder não seria algo que uns deteriam e outros não. O
poder também não emanaria a partir de um determinado ponto fixo, seja o chefe
da tribo ou o guerreiro, no caso da sociedade tradicional ou do cargo, no caso da
sociedade Burocrática. O poder aconteceria em um exercício e assim, não consistiria
em nada além de uma relação de forças. Podemos dizer também que o poder não
possuiria uma negatividade, ou seja, agiria negando e reprimindo a quem não o detivesse,
mas sim, agiria de forma positiva no sentido de produzir as realidades e as
subjetividades próprias ao seu exercício.
Mas, ponto comum entre as duas abordagens é o contexto do exercício do poder.
Tanto para Foucault quanto para Weber relações de poder só poderiam existir caso
os membros envolvidos em tais relações gozassem de liberdade.
Ao contrário do pensamento usual, o poder não é contrário à liberdade. Sociedades
nas quais seus membros não gozem de liberdade política estão sob o jugo de relações
de submissão e não relações de poder.
Concluímos assim, ser de extrema importância a introdução dos estudos de Foucault
para a compreensão do funcionamento das relações de poder no interior das organizações.
Primeiramente pelo fato dele ter apresentado com maestria sem igual o funcionamento
dos dispositivos de poder no interior das mesmas, como afirma Deleuze
(1992, p. 219): “Foucault analisou muito bem o projeto ideal dos meios de confinamento,
visível especialmente na fábrica: concentrar; distribuir no espaço; ordenar no
tempo; compor no espaço-tempo uma forma produtiva cujo efeito deve ser superior
à soma das forças elementares”. Em segundo lugar pelo fato de ter trabalhado com
formas reais em oposição a tipos ideais ou puros o que ajuda a análise ao tirar seu
foco de elementos transcendentes.
Mas talvez o que mais torna o pensamento de Foucault importante para compreender
as relações de poder nas organizações contemporâneas é o fato de que com as
modificações da estrutura das organizações – a estrutura departamentalizada foi
substituída por estruturas voltadas para processos – e na forma com que o trabalho
é executado – de uma extrema separação entre a concepção e a execução para a
realização do trabalho em equipes multifuncionais – fica difícil ainda acreditar que
os sujeitos aceitam o mando por serem fiéis às regras e prescrições de seus cargos.
Parece fazer mais sentido acreditar que as pessoas aceitam serem lideradas por o
conteúdo do trabalho as afetarem de alguma forma, ou seja, as atividades que tem
de executar fazerem algum sentido para as mesmas e, como última observação,
podemos citar também a importância do conceito da produção subjetiva como fator
explicativo para a atual debilidade e inoperância dos movimentos trabalhistas.
64
Rev. Universo Administração, v. 1, Ano 1, p. 54-64, jun./dez. 2006
Max Weber e Michel Foucault: uma análise sobre poder.
5. Referências
DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.
______.Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
FOUCAULT , Michel. Microfísica do poder. 16. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal,
2001.
______. Vigiar e punir. 25. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
HARDT, Michael; NEGRI, Antônio. Império. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.
ROSA, Ronney Muniz. Subjetividade produzida: poder e disciplina em uma problematização
foucaultiana. In: BAPTISTA, Dulce. et al. (orgs). Cidadania e subjetividade. Rio
de Janeiro: Imaginário, 1990.
WEBER, Max. Sociologia. 6. ed. São Paulo: Ática, 1997.
______. Ensaios de sociologia. 5. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982.

O valor da filosofia Por Bertrand Russell

O Valor da Filosofia

Tendo agora chegado ao término da nossa breve e incompletíssima revisão dos problemas da filosofia, será conveniente considerar, para concluir, qual é o valor da filosofia e por que ela deve ser estudada. É da maior importância considerar esta questão, em vista do facto de que muitos homens, sob a influência da ciência e dos negócios práticos, propendem a duvidar se a filosofia é algo melhor que inocente mas inútil passatempo, com distinções subtis e controvérsias sobre questões em que o conhecimento é impossível.

Esta visão da filosofia parece resultar, em parte, de uma concepção errada dos fins da vida humana e em parte de uma concepção errada sobre o tipo de bens que a filosofia se empenha em buscar. As ciências físicas, por meio de invenções, é útil para inumeráveis pessoas que a ignoram completamente; e por isso o estudo das ciências físicas é recomendável não somente, ou principalmente, por causa dos efeitos sobre os seus estudantes, mas antes por causa dos efeitos sobre a humanidade em geral. É esta utilidade que pertence à filosofia. Se o estudo de filosofia tem algum valor para outras pessoas além dos estudantes de filosofia, deve ser somente indirectamente, através de seus efeitos sobre a vida daqueles que a estudam. Portanto, é nos seus efeitos, se é que ela tem algum, que se deve procurar o valor da filosofia.

Mas, além disso, se não quisermos fracassar no nosso esforço para determinar o valor da filosofia, devemos em primeiro lugar libertar as nossas mentes dos preconceitos dos que são incorrectamente chamados homens práticos. O homem prático, como esta palavra é frequentemente usada, é alguém que reconhece apenas necessidades materiais, que acha que o homem deve ter alimento para o corpo, mas se esquece que é necessário prover alimento para o espírito. Se todos os homens estivessem bem; se a pobreza e as enfermidades tivessem já sido reduzidas o mais possível, ainda ficaria muito por fazer para produzir uma sociedade verdadeiramente válida; e até no mundo existente os bens do espírito são pelo menos tão importantes quanto os bens materiais. É exclusivamente entre os bens do espírito que o valor da filosofia deve ser procurado; e somente aqueles que não são indiferentes a esses bens podem persuadir-se de que o estudo da filosofia não é perda de tempo.

A filosofia, como todos os outros estudos, visa em primeiro lugar o conhecimento. O conhecimento que ela tem em vista é o tipo de conhecimento que confere unidade sistemática ao corpo das ciências, bem como o que resulta de um exame crítico dos fundamentos de nossas convicções, de nossos preconceitos, e de nossas crenças. Mas não se pode dizer, no entanto, que a filosofia tenha tido algum grande êxito na sua tentativa de fornecer respostas definitivas para os seus problemas. Se perguntarmos a um matemático, a um mineralogista, a um historiador, ou a qualquer outro cientista, que definido corpo de verdades foi estabelecido pela sua ciência, a sua resposta durará tanto tempo quanto estivermos dispostos a lhe dar ouvidos. Mas se fizermos essa mesma pergunta a um filósofo, ele terá que confessar, se for sincero, que a filosofia não tem alcançado resultados positivos tais como têm sido alcançados pelas ciências. É verdade que isso se explica, em parte, pelo facto de que, mal se torna possível um conhecimento preciso naquilo que diz respeito a determinado assunto, este assunto deixa de ser chamado de filosofia, e torna-se uma ciência especial. Todo o estudo dos corpos celestes, que hoje pertence à Astronomia, se incluía outrora na filosofia; a grande obra de Newton tem por título: Princípios matemáticos da filosofia natural. De maneira semelhante, o estudo da mente humana, que era uma parte da filosofia, está hoje separado da filosofia e tornou-se a ciência da psicologia. Assim, em grande medida, a incerteza da filosofia é mais aparente do que real: aquelas questões para as quais já se tem respostas positivas vão sendo colocadas nas ciências, ao passo que aquelas para as quais não foi encontrada até o presente nenhuma resposta exacta, continuam a constituir esse resíduo a que é chamado de filosofia.

Isto é, no entanto, só uma parte do que é verdade quanto à incerteza da filosofia. Existem muitas questões ainda - e entre elas aquelas que são do mais profundo interesse para a nossa vida espiritual - que, na medida em que podemos ver, deverão permanecer insolúveis para o intelecto humano, a menos que seus poderes se tornem de uma ordem inteiramente diferente daquela que são actualmente. O universo tem alguma unidade de plano e objectivo, ou ele é um concurso fortuito de átomos? É a consciência uma parte permanente do universo, dando-nos esperança de um aumento indefinido da sabedoria, ou ela não passa de transitório acidente sobre um pequeno planeta, onde a vida acabará por se tornar impossível? São o bem e o mal importantes para o universo ou somente para o homem? Tais questões são colocadas pela filosofia, e respondidas de diversas maneiras por vários filósofos. Mas, parece que se as respostas são de algum modo descobertas ou não, nenhuma das respostas sugeridas pela filosofia pode ser demonstrada como verdadeira. E, no entanto, por fraca que seja a esperança de vir a descobrir uma resposta, é parte do papel da filosofia continuar a examinar tais questões, tornar-nos conscientes da sua importância, examinar todas as suas abordagens, mantendo vivo o interesse especulativo pelo universo, que correríamos o risco de deixar morrer se nos confinássemos aos conhecimentos definitivamente determináveis.

Muitos filósofos, é verdade, sustentaram que a filosofia poderia estabelecer a verdade de certas respostas a tais questões fundamentais. Eles supuseram que o que é mais importante no campo das crenças religiosas pode ser provado como verdadeiro por meio de estritas demonstrações. A fim de julgar tais tentativas, é necessário fazer uma investigação sobre o conhecimento humano, e formar uma opinião quanto aos seus métodos e às suas limitações. Sobre tais assuntos é insensato pronunciarmo-nos dogmaticamente. <...> Portanto, não podemos incluir como parte do valor da filosofia qualquer série de respostas definidas a tais questões. Mais uma vez, portanto, o valor da filosofia não depende de um suposto corpo de conhecimento definitivamente assegurável, que possa ser adquirido por aqueles que a estudam.

O valor da filosofia, na realidade, deve ser buscado, em grande medida, na sua própria incerteza. O homem que não tem umas tintas de filosofia caminha pela vida fora preso a preconceitos derivados do senso comum, das crenças habituais da sua época e do seus país, e das convicções que cresceram no seu espírito sem a cooperação ou o consentimento de uma razão deliberada. Para tal homem o mundo tende a tornar-se finito, definido, óbvio; para ele os objectos habituais não levantam problemas e as possibilidades não familiares são desdenhosamente rejeitadas. Quando começamos a filosofar, pelo contrário, imediatamente nos damos conta de que até as coisas mais básicas conduzem a problemas para os quais somente podem ser dadas respostas muito incompletas . A filosofia, apesar de incapaz de nos dizer com certeza qual é a verdadeira resposta para as dúvidas que ela própria levanta, é capaz de sugerir numerosas possibilidades que ampliam os nossos pensamentos, livrando-os da tirania do hábito. Desta maneira, embora diminua o nosso sentimento de certeza com relação ao que as coisas são, aumenta em muito o nosso conhecimento a respeito do que as coisas podem ser; ela remove o dogmatismo um tanto arrogante daqueles que nunca chegaram a empreender viagens nas regiões da dúvida libertadora; e vivifica o nosso sentimento de admiração, ao mostrar as coisas familiares num determinado aspecto não familiar.

Além da sua utilidade ao mostrar insuspeitadas possibilidades, a filosofia tem um valor - talvez o seu principal valor - por causa da grandeza dos objetos que ela contempla, e da liberdade proveniente da visão rigorosa e pessoal resultante da sua contemplação. A vida do homem reduzido ao instinto encerra-se no círculo dos seus interesses particulares; a família e os amigos podem ser incluídos, mas o resto do mundo para ele não conta, excepto na medida em que ele pode ajudar ou impedir o que surge dentro do círculo dos desejos instintivos. Em tal vida existe alguma coisa que é febril e limitada, em comparação com a qual a vida filosófica é serena e livre. Situado em meio de um mundo poderoso e vasto que mais cedo ou mais tarde deverá deixar o nosso mundo privado em ruínas, o mundo privado dos interesses instintivos é muito pequeno. A não ser que ampliemos o nosso interesse de maneira a incluir todo o mundo externo, ficaremos como uma guarnição numa praça sitiada, sabendo que o inimigo não a deixará fugir e que a capitulação final é inevitável. Não há paz em tal vida, mas uma luta contínua entre a insistência do desejo e a impotência da vontade. De uma maneira ou de outra, se pretendemos uma vida grande e livre, devemos escapar desta prisão e desta luta.

Uma válvula de escape é pela contemplação filosófica. A contemplação filosófica não divide, nas suas investigações mais amplas, o universo em dois campos hostis: amigos e inimigos, aliados e adversários, bons e maus; ela encara o todo imparcialmente. A contemplação filosófica, quando é pura, não visa provar que o restante do universo é semelhante ao homem. Toda a aquisição de conhecimento é um alargamento do Eu, mas este alargamento é melhor alcançado quando não é procurado directamente. Este alargamento é obtido quando o desejo de conhecimento é somente operativo, por um estudo que não deseja previamente que os seus objetos tenham este ou aquele carácter, mas adapte o Eu aos caracteres que ele encontra nos seus objectos. Esse alargamento do Eu não é obtido quando, tomando o Eu como ele é, tentamos mostrar que o mundo é tão similar a este Eu que seu conhecimento é possível sem qualquer aceitação do que parece estranho. O desejo para provar isto é uma forma de egotismo, é um obstáculo para o crescimento do Eu que ele deseja, e do qual o Eu sabe que é capaz. O egotismo, na especulação filosófica como em tudo o mais, vê o mundo como um meio para seus próprios fins; assim, ele faz do mundo menos caso do que faz do Eu, e o Eu coloca limites para a grandeza dos seus bens. Na contemplação, pelo contrário, partimos do não-Eu, e por meio de sua grandeza os limites do Eu são ampliados; através da infinidade do universo, a mente que o contempla participa um pouco da infinidade.

Por esta razão a grandeza da alma não é promovida por aquelas filosofias que assimilam o universo ao Homem. O conhecimento é uma forma de união do Eu com o não-Eu. Como toda a união, ela é prejudicada pelo domínio, e, portanto, por qualquer tentativa de forçar o universo em conformidade com o que descobrimos em nós mesmos. Existe uma tendência filosófica muito difundida em relação à visão que nos diz que o Homem é a medida de todas as coisas; que a verdade é construção humana; que espaço e tempo, e o mundo dos universais, são propriedades da mente, e que, se existe alguma coisa que não seja criada pela mente, é algo incognoscível e de nenhuma importância para nós. Esta visão, se as nossas discussões precedentes forem correctas, não é verdadeira; mas além de não ser verdadeira, ela tem o efeito de despojar a contemplação filosófica de tudo aquilo que lhe dá valor, visto que ela aprisiona a contemplação do Eu. O que tal visão chama conhecimento não é uma união com o não-Eu, mas uma série de preconceitos, hábitos e desejos, que compõem um impenetrável véu entre nós e o mundo para além de nós. O homem que se compraze em tal teoria do conhecimento humano assemelha-se ao homem que nunca abandona seu círculo doméstico por receio de que fora dele sua palavra não seja lei.

A verdadeira contemplação filosófica, pelo contrário, encontra a sua satisfação no próprio alargamento do não-Eu, em todas as coisas que engrandecem os objectos contemplados, e desse modo, o sujeito que contempla. Na contemplação, tudo aquilo que é pessoal e privado, tudo o que depende do hábito, do auto-interesse ou desejo, deforma o objecto, e, portanto, prejudica a união que a inteligência busca. Levantando uma barreira entre o sujeito e o objecto, as coisas pessoais e privadas tornam-se uma prisão para o intelecto. O livre intelecto verá assim como Deus poderia ver: sem um aqui e agora; sem esperança e sem medo; isento das crenças habituais e preconceitos tradicionais: calmamente, desapaixonadamente, com o único e exclusivo desejo de conhecimento - conhecimento tão impessoal, tão puramente contemplativo quanto é possível a um homem alcançar. Por isso, o espírito livre valorizará mais o conhecimento abstracto e universal em que não entram os acidentes da história particular, que ao conhecimento trazido pelos sentidos, e dependente - como tal conhecimento deve ser - de um ponto de vista pessoal e exclusivo, e de um corpo cujos órgãos dos sentidos distorcem tanto quanto revelam.

A mente que se tornou acostumada com a liberdade e imparcialidade da contemplação filosófica preservará alguma coisa da mesma liberdade e imparcialidade no mundo da acção e da emoção. Ela encarará os seus objectivos e desejos como partes do Todo, com a ausência da insistência que resulta de considerá-los como fragmentos infinitesimais num mundo em que todo o resto não é afectado por qualquer uma das acções dos homens. A imparcialidade que, na contemplação, é o desejo extremo pela verdade, é aquela mesma qualidade espiritual que na acção é a justiça, e na emoção é o amor universal que pode ser dado a todos e não só aos que são considerados úteis ou admiráveis. Assim, a contemplação amplia não somente os objectos dos nossos pensamentos, mas também os objectos das nossas acções e dos nossos sentimentos: ela torna-nos cidadãos do universo, não somente de uma cidade entre muros em estado de guerra com tudo o mais. Nesta qualidade de cidadão do mundo consiste a verdadeira liberdade humana, que nos tira da prisão das mesquinhas esperanças e medos.

Enfim, para resumir a discussão do valor da filosofia, ela deve ser estudada, não em virtude de algumas respostas definitivas às suas questões, visto que nenhuma resposta definitiva pode, por via de regra, ser conhecida como verdadeira, mas sim em virtude daquelas próprias questões; porque tais questões alargam a nossa concepção do que é possível, enriquecem a nossa imaginação intelectual e diminuem a nossa arrogância dogmática que impede a especulação mental; mas acima de tudo porque através da grandeza do universo que a filosofia contempla, a mente também se torna grande, e se torna capaz daquela união com o universo que constitui o seu bem supremo.

Bertrand Russell, Os Problemas da Filosofia,Capítulo XV, 1912, Oxford University Press, 1959, reimpresso em 1971-2. Tradução: Jaimir Conte (Tradução revista e adaptada pela redacção do Espanto).

Texto recolhido no Site: http://www.sociologia.de

Ética a Nicômaco

Ética a Nicômaco é a principal obra de ética de Aristóteles. Nela se expõe sua concepção teleológica e eudaimonista de racionalidade prática, sua concepção da virtude como mediania e suas considerações acerca do papel do hábito e da prudência na Ética. É considerada a mais amadurecida e representativa do pensamento aristotélico.

O título da obra advém do nome de seu filho, e também discípulo, Nicômaco. Supõe-se que a obra resulte das “anotações de aula” deste e publicadas pelos discípulos de Aristóteles depois da morte prematura, em combate, de Nicômaco.

Aristóteles inicia suas aulas sobre ética, conforme as anotações de seu filho, discutindo as idéias de seu mestre Platão. E, embora vá diferir deste em muitos pontos – passando de um idealismo para um realismo, se assim se pode falar, - a idéia fundamental de Aristóteles é, tanto quanto para Platão, o Bem Supremo. E esse bem supremo é ainda e sempre a felicidade.

No Livro II da Ética a Nicômacos, há um trecho que expressa, de maneira exímia, o intuito, o propósito, o objeto e o sujeito do estudo da ética: Estou falando da excelência moral, pois é esta que se relaciona com as emoções e ações, e nestas há excesso, falta e meio termo. Por exemplo, pode-se sentir medo, confiança, desejos, cólera, piedade, e, de um modo geral, prazer e sofrimento, demais ou muito pouco, e, em ambos os casos, isto não é bom: mas experimentar estes sentimentos no momento certo, em relação aos objetos certos e às pessoas certas, e de maneira certa, é o meio termo e o melhor, e isto é característico da excelência. Há também, da mesma forma, excesso, falta e meio termo em relação às ações. Ora, a excelência moral se relaciona com as emoções e as ações, nas quais o excesso é uma forma de erro, tanto quanto a falta, enquanto o meio termo é louvado como um acerto; ser louvado e estar certo são características da excelência moral. A excelência moral, portanto, é algo como eqüidistância, pois, como já vimos, seu alvo é o meio termo. Ademais é possível errar de várias maneiras, ao passo que só é possível acertar de uma maneira (também por esta razão é fácil errar e difícil acertar – fácil errar o alvo, e difícil acertar nele); também é por isto que o excesso e a falta são características da deficiência moral, e o meio termo é uma característica da excelência moral, pois a bondade é uma só, mas a maldade é múltipla.

Aristóteles aprofunda os ensinamentos que retirou de Platão (República), e elabora sua teoria ética a partir das estruturas morais vigentes na comunidade grega do século V a.C. De um modo geral, pode-se dizer que a sua teoria apresenta o procedimento do homem prudente como um valor, cuja opinião dos homens mais velhos, a experiência da vida e os costumes da cidade são condições objetivas para se filosofar politicamente. Diferentemente de Platão, Aristóteles humanizou o fim último, ou seja, o fim último foi afirmado no plano terreno. Por isso, o ético em Aristóteles é entendido a partir do ethos (do costume), da maneira concreta de viver vigente na sociedade. É exatamente o ethos que funciona como elo entre as esferas jurídica e política. As ordens jurídica e política pressupõem o ethos.

A obra de Aristóteles é sistemática. E orientada ao fim último, o Bem Supremo, identificada com a felicidade, ou eudemonia, em grego. É por isso que inicia a sua argumentação negando o postulado platônico, muito embora tal investigação se torne penosa pelo fato de as Formas terem sido introduzidas na filosofia por um amigo. Mas, o fato de Aristóteles ter dedicado à amizade dois livros, o VIII e o IX, indica bem o grau de relacionamento que ele tinha com Platão. Porém, “talvez pareça melhor, e de fato seria até uma obrigação, especialmente para um filósofo, sacrificar até suas relações pessoais mais estreitas em defesa da verdade”. E a defesa da verdade o leva a concluir que “O bem, portanto, não é uma generalidade correspondente a uma forma única”. Isto porque o bem deve ser algo atingível pelo homem, através de sua atividade, e não um “bem em si”, ideal e inatingível.

Aristóteles, fiel ao método científico, estabelece uma espécie de classificação de bens, e uma hierarquia na sua realização, tomando como critério o fim visado. Já que há mais de uma finalidade: o fim da medicina é a saúde, da estratégia, a vitória, e assim por diante, devemos prosseguir do bem que é desejável por causa de outra coisa ao bem que sempre é desejável em si:

Parece que a felicidade, mais que qualquer outro bem, é tida como este bem supremo, pois a escolhemos sempre por si mesma, e nunca por causa de algo mais; mas as honrarias, o prazer, a inteligência e todas as outras formas de excelência, embora as escolhamos por si mesmas (escolhê-lasiamos ainda que nada resultasse delas), escolhemo-las por causa da felicidade, pensando que através delas seremos felizes. Ao contrário, ninguém escolhe a felicidade por causa das várias formas de excelência, nem, de um modo geral, por qualquer coisa além dela mesma.

E a felicidade não como uma forma abstrata, ideal, mas “a felicidade como uma forma de viver bem e conduzir-se bem”.

Porém, ainda que assim o seja, parece que a forma de vida tem profundas implicações na compreensão e realização do que seja “viver bem” e “conduzir-se bem”, em relação ao bem supremo. Por isso Aristóteles, ao mesmo tempo em que discute as características da felicidade, como algo que deve ser escolhida por si mesma, questiona a vida prática dos homens, especialmente dos mais vulgares, que parecem “identificar o bem, ou a felicidade, com o prazer". E, então, identifica três tipos principais de vida:

- A vida agradável, cujos representantes visam sobretudo “aproveitar a vida”, assemelhando-se “totalmente aos escravos, preferindo uma vida comparável à dos animais”;

- A vida política, cujo exame dos tipos principais “demonstra que as pessoas mais qualificadas e atuantes identificam a felicidade com as honrarias”, “com vistas ao reconhecimento de seus méritos”;

- A vida contemplativa, que visa unicamente a verdade e a perfeição, ou o Bem Supremo por si mesmo, conforme Aristóteles desenvolve ao longo de toda obra.

Desta realidade advém a necessidade de investigação ética e da elaboração de normas morais. Além do que antecipa três modos de consciência, que por si só demandaria um estudo aprofundado e riquíssimo. De qualquer forma, a partir destas constatações, Aristóteles começa a refletir sobre as questões éticas. É útil adiantar que Aristóteles começa com exemplo práticos da vida cotidiana, sobre eles reflete e a eles retorna. Tal procedimento identifica o trabalho ético bem como o objeto de seu estudo. Logo, o objeto da ética é o “comportamento prático-moral”. Assim, o que faz Aristóteles ao referir-se continuamente a exemplos da vida prática, é ética, ou dito de outro modo, ciência da moral, visto que reflete sobre o comportamento moral visando, não estabelecer normas, mas indicar o caminho da “escolha correta”, em relação ao bem supremo.

Por este motivo, logo em seguida inicia a reflexão sobre a areté, termo grego traduzido por "virtude" ou 'excelência moral", e que, segundo ele, se diferencia em duas espécies: a excelência intelectual (sophia), das quais são exemplos a sabedoria, a inteligência, o discernimento; e a excelência moral (phrônesis), das quais são exemplos a liberdade e a moderação. Na Ética a Nicômaco Aristóteles se ocupa primordialmente, como é óbvio, da excelência moral, acentuando cada vez mais o papel central da phrônesis, traduzido como "discernimento" (e em algumas outras traduções como "prudência").

A reflexão aristotélica quanto à ética compreende duas categorias de virtudes: as virtudes morais, fundamentadas na vontade, e as virtudes intelectuais, baseadas na razão. Como exemplo de virtudes morais, temos: a coragem, a generosidade, a magnificência, a doçura, a amizade e a justiça. As virtudes intelectuais ou dianoéticas são: a sabedoria, a temperança, a inteligência e a verdade. Uma ação pode ser considerada como justa quando realiza o equilíbrio das virtudes morais e quando alcança as virtudes intelectuais. O objetivo da ação moral é a justiça, assim como, a verdade é o objetivo da ação intelectual. Em sentido lato, a justiça configura o exercício de todas as virtudes, observando-se a instância da alteridade. Em sentido estrito, encontra-se como uma virtude ética que implica o princípio da igualdade. Tendo por base tal premissa, Aristóteles inicia sua ética a partir da realidade social de sua época. O ponto central torna-se o conceito de atividade; atividade no sentido de que o homem deve realizar ao máximo suas disposições naturais (aptidões). O homem deve buscar esse aperfeiçoamento para com isso alcançar a felicidade. Esse pensador assinala que o cultivo da inteligência é o bem supremo, o summum bonum, logo sua concepção ética é denominada de ética das virtudes ou ética eudemônica, isso porque enfatiza a busca pelo bem viver e pela felicidade, no sentido estrito de pleno desenvolvimento das disposições naturais. O homem deve desenvolver suas aptidões para alcançar o seu fim (télos), sua perfeição, por isso que eudemonia e télos estão intrinsecamente ligados, formando uma ética imanente da felicidade terrena, portanto política.

O conceito de eudemonia vincula-se ao conceito de justiça apresentado por Platão na República, que também compreende a noção de justiça como uma virtude que precisa ser praticada constantemente e não pode ser tomada como aquisição contínua, mas como um exercício político, assim expresso no livro II, capítulo 6, da Ética a Nicômaco. Aristóteles apresenta o sentido do conceito de virtude como hábito, ou seja, algo que existe em potência mas que precisa ser desenvolvido. A natureza oferece as condições de possibilidades para que o homem possa desenvolver suas aptidões conforme sua essência racional, nesse caso a justiça como um valor ético se desvela em nossos atos, logo “toda virtude e toda técnica nascem e se desenvolvem pelo exercício.

Observa-se que a prática da virtude não se confunde com um mero saber técnico, não basta a conformidade, exige-se a consciência do ato virtuoso. O homem considerado justo deve agir por força de sua vontade racional. Na Ética a Nicômaco, Aristóteles enumera três condições para que um ato seja virtuoso, a saber: primeiro, o homem deve ter consciência da justiça de seu ato; segundo, a vontade deve agir motivada pela própria ação; terceiro, deve-se agir com inabalável certeza da justeza do ato. As virtudes são disposições ou hábitos adquiridos ao longo da vida e se fundamentam na idéia de que o homem deve sempre realizar o melhor de si. A virtude será uma espécie de meio termo, termo médio entre os extremos, evitando, assim por dizer, o excesso e a deficiência, uma vez que a justiça é uma virtude que só pode ser praticada em relação ao outro e de modo consciente. O objeto da justiça é realizar a felicidade na pólis, o seu oposto, a injustiça, poderá ocorrer por falta ou por excesso.

Aristóteles distingue duas classes de justiça: a universal e a particular. A justiça universal significa a justiça em sentido amplo que pode ser definida como conformidade ao nomos (norma jurídica, costume, convenção social, tradição). Esta norma constituinte do nomos é dirigida a todos. A ação deve corresponder a um tipo de justo que é o justo legal. O membro da pólis se relaciona com todos os demais, ainda que virtualmente, e compartilha com todos os efeitos de sua atitude ou omissão. A justiça universal ressalta a importância da legalidade como um dos aspectos que fundamenta a coesão social. A comunidade existe virtualmente na pessoa de cada membro. O homem virtuoso é aquele em que, segundo seu agir, o elemento essencial passa pela observância do princípio neminem laedere (não prejudique a ninguém).

A justiça particular significa em sentido estrito o hábito de realizar a igualdade. Este tipo de justiça refere-se ao outro no sentido de uma relação direta entre partes, típica da experiência citadina. Esse tipo de justiça vincula-se com a justiça universal, pois o transgressor da justiça particular se compromete também diante do nomos. O justo particular apresenta-se em duas formas distintas: o justo particular distributivo que assinala a justiça distributiva e o justo particular corretivo que apresenta a justiça corretiva. A idéia de justiça distributiva surge no sentido de igualdade na devida proporção. Essa modalidade de justiça regula as ações da sociedade política com seus membros e tem por objeto a justa distribuição dos bens públicos: honras, riquezas, encargos sociais e obrigações. Essa prática também se fundamenta na igualdade que não se confunde com uma igualdade matemática e rígida, mas geométrica ou proporcional que observa o dever de dar a cada um o que lhe é devido; observa os dotes naturais do cidadão, sua dignidade, o nível de suas funções, sua formação e posição na hierarquia organizacional da polis. O princípio de igualdade que figura neste tipo de justiça exige uma desigualdade de tratamento, pois sendo diferentes segundo o mérito, os benefícios a serem atribuídos também devem ser diferentes.

A outra modalidade de justiça particular é a justiça corretiva ou sinalagmática, que se divide em comutativa e judicial. Trata-se de um tipo de justiça que regula as relações entre cidadãos e utiliza o critério do justo meio aritmético ou igualdade.

Para Aristóteles, a excelência moral não é emoção ou faculdade, mas disposição da alma - exatamente uma disposição para escolher o meio termo.

Por meio termo Aristóteles quer “significar aquilo que é eqüidistante em relação a cada um dos extremos, e que é o único e o mesmo em relação a todos os homens”. É a escolha justa, correta, feita com discernimento e encaminhada pela prudência. Portanto, ela não pode ser uma emoção, porque a regula; não pode ser uma faculdade, porque, ao mesmo tempo que dela se vale para regular a emoção, no “espaço” que vai do prazer ao sofrimento1, a atrai para a ação, para orientar a atividade. É por possuir essa disposição que “um mestre em qualquer arte evita o excesso e a falta, buscando e preferindo o meio termo – o meio termo não em relação ao próprio objeto, mas em relação a nós”. Não é por outro motivo que “se afirma com freqüência que nada se pode acrescentar ou tirar às boas obras de arte”. O meio termo (mesotês) é, assim, o caminho ético para a excelência, para o “mestre na arte da vida”. Caminhar para ele requer, de um lado, o reconhecimento de que a felicidade não se confunde com o prazer e o sofrimento, visto que “é por causa do prazer que praticamos más ações, e é por causa do sofrimento que deixamos de praticar ações nobiliantes”; de outro lado, a construção progressiva de uma consciência moral constituída, por assim dizer, pelos “meios termos” ou excelências morais, operada pelo discernimento e regulada pela reta razão.



É por incorporar tais conceitos e tais virtudes em sua concepção de felicidade que esta só é atingida em Aristóteles depois de um logo itinerário, calcado no esforço e na prática constante. Para ser justo, diz-nos ele, o homem precisa da prática reiterada de atos justos, e assim também para ser moderado... visto que “sem os praticar ninguém teria sequer remotamente a possibilidade de tornar-se bom”. Logo é na ação que se forja o homem de excelência moral. Mas não em uma ação desordenada e irrefletida, desvinculada dos procedimentos mais nobiliantes do ser humano: A origem da ação (sua causa eficiente, e não final) é a escolha, e a origem da escolha está no desejo e no raciocínio dirigido a algum fim. É por isto que a escolha não pode existir sem a razão e o pensamento ou sem uma disposição moral, pois as boas e as más ações não podem existir sem uma combinação de pensamento e caráter. Há, pois, já em Aristóteles íntimo relacionamento entre escolha-desejo-razão-ação-caráter. O esforço ético não é no aperfeiçoamento e ampliação do razão, em seu sentido “puro” ou teórico (esta é função da sophia), mas no “agir bem” para “viver bem”. Para tanto, o aperfeiçoamento e ampliação do caráter é importante. Porque o caráter é, se assim é possível falar, o “sujeito”, o “executivo” do desejo, que em última análise, no campo prático-moral, jaz na base da escolha e da ação.

Ora, mas por “melhor que seja o caráter”, este não transforma o “desejo de aproveitar a vida” em “desejo de reconhecimento”, nem este no “desejo de contemplação”. Ele “apenas” torna moral tal desejo, dentro de cada âmbito. É o domínio da razão, no seu sentido “máximo”, de vida contemplativa, que pode operar tais transformações. Portanto, em Aristóteles é impossível separar, a não ser didaticamente, as duas excelências: a intelectual e a moral. Por isso a acentuada relação entre a Ética e a Metafísica.

Na Ética a Nicômaco outro tópico acentuado, portanto, é o da emoção, tão em moda hoje em dia: “Por emoções quero significar os desejos, a cólera, o medo, a temeridade, a inveja, a alegria, a amizade, o saudade, o ciúme, a emulação, a piedade, e de um modo geral os sentimentos acompanhados de prazer ou sofrimento”. Logo, Aristóteles associa emoção ao prazer ou sofrimento no sentido salientado atrás em que, ou praticamos más ações ou deixamos de praticar nobres ações. Obviamente que Aristóteles, ao dar tal sentido ao prazer refere-se, por assim dizer, à compreensão vulgar do prazer, associada à primeira espécie de vida. É principalmente a tal noção de prazer que deve-se usar da “reta razão”, bem como, certamente, a toda espécie de vício. Isto porque a reta razão opera sobretudo através do discernimento.

A reta razão é a razão orientada aos aspectos práticos da vida, é a razão orientada a algum fim, e não um fim em si mesma, como é a vida contemplativa. “...a excelência moral não é apenas a disposição consentânea com a reta razão; ela é a disposição em que está presente a reta razão, e o discernimento é a reta razão relativa à conduta”. Logo, é preciso ter uma disposição prática na vida para que o discernimento se manifeste. Se a vida contemplativa é a virtude mais elevada ela, por não levar a nenhum fim, não produz discernimento.

Até o capítulo 5 do Livro I, Aristóteles trata então da felicidade de maneira subjetiva, terminando o capítulo com um aperfeiçoamento, seu método típico, dos pontos de vista do senso comum. Colocando à prova sua definição e comparando-a com as noções aceitas sobre a ventura humana ele conclui que prazer e gozo são apenas estados agradáveis para a alma. São elementos do bem-estar, da felicidade, mas não constituem a sua essência e não devem se tornar o objetivo principal da vida. Rejeita também a noção de que uma vida devotada a ganhar dinheiro produzirá por si mesma a felicidade: “a vida dedicada a ganhar dinheiro é vivida sob compulsão”. A prosperidade razoável é um pressuposto da ventura, mas a riqueza não pode ser o bem supremo por ser essencialmente um meio de chegar a outros bens. Tampouco pode a honra ser o bem supremo por ser um bem exterior proporcionado pelo reconhecimento de outras pessoas, enquanto a felicidade deve vir de dentro da personalidade de quem o tem, é uma felicidade que se encontra na alma e não nos bens exteriores ou do corpo. Ele deixa, porém, a discussão sobre a vida contemplativa para o livro X.

A partir do capítulo 6, com a discussão que começa sobre o bem, Aristóteles diferencia seu conceito de bem do conceito platônico pois, enquanto Platão trabalha com o bem em si, com a idéia de bem separada de nosso mundo, ele diz que existem tantos bens como ações e artes, trazendo o bem para a imanência, como atividade do homem. É nesse momento que vejo Aristóteles novamente metafísico, pai do conceito de essência, atribuindo todas as coisas a uma causa final. Neste sentido a felicidade aparece como o fim visado em cada atividade humana, como se a eudaimonia consistisse no cumprimento perfeito de nossa natureza, natureza entendida como essência e, felicidade, como “algo final e auto-suficiente”. A felicidade é um estado do homem em que a sua natureza e aspirações essenciais se realizam plenamente conforme seus fins.

Aristóteles pergunta então se há algum poder ou função restritos apenas aos seres humanos, e que sirva para distinguir o gênero humano do reino animal. Ele encontra essa característica distintiva na capacidade de raciocinar do homem, que aparece tanto em sua resposta à razão como no exercício da razão:

Resta, então, a atividade vital do elemento racional do homem; uma parte deste é dotada de razão no sentido de ser obediente a ela, e a outra no sentido de possuir a razão de pensar.

Sendo o elemento racional ativo peculiar ao homem, ele serve para definir sua própria função, que é viver ativamente conforme a razão. O homem bom, portanto, é aquele que exerce com sucesso suas funções se realizando, elevando sua vida até a mais alta excelência de que é capaz, vivendo bem e feliz: “o bem para o homem vem a ser o exercício ativo das faculdades da alma de conformidade com a excelência”. A definição é complementada logo a seguir com a adição da frase “deve estender-se por toda a vida” para reforçar a afirmação de que um momento de felicidade não constitui a bem-aventurança (felicidade), assim como uma andorinha só não faz o verão.

Tendo realizado, como diz Aristóteles, esse esboço sobre o bem, ele parte em seguida para uma discussão sobre a natureza das excelências ou virtudes humanas – de acordo com as quais a atividade humana deve se realizar – com o objetivo de fundamentar melhor sua ética. Até este ponto podemos dizer que a atividade é a verdadeira essência da felicidade. É a felicidade em ato, não em potência. A virtude deve se mostrar nas ações “da mesma forma que nos jogos Olímpicos os coroados não são os homens mais fortes e belos, e sim os que competem (alguns destes serão vitoriosos), quem age conquista, e justamente, as coisas boas da vida”.

No final do livro I estão definidas as duas espécies de excelência ou virtude que existem para Aristóteles: as intelectuais (por exemplo a sabedoria, a inteligência e o discernimento) e as morais (por exemplo a liberalidade e a moderação). Ele considerava as virtudes morais como disposições ou atitudes para a ação, adquiridas mediante o exercício e aperfeiçoadas pela prática. Daí a importância do hábito no desenvolvimento desta excelência: as pessoas não nascem boas, mas nascem com a capacidade de tornarem-se boas se desenvolverem as disposições apropriadas mediante a prática reiterada de boas ações. Já a excelência intelectual é um componente ainda mais importante do bem viver do que a excelência moral. Para Aristóteles é necessário ter prudência, ou sabedoria prática, para apreciar corretamente os fatores em qualquer situação em que é necessária a ação moral. Ela que nos capacita a selecionar os meios certos para atingir nossos objetivos desejados pois trata de situações e problemas concretos que requerem deliberação. À semelhança das virtudes morais, é uma disposição para fazer boas escolhas podendo ser melhorada e fortalecida pela prática, estando completamente na parte racional da alma.

Ainda na Ética a Nicômaco, livro III, Capítulo 02, Aristóteles apresenta uma reflexão sobre a escolha. Segundo o filosófo, ela parece ser algo voluntário, porém não é pela involuntariedade que o estagirita a define. A escolha não é comum à irracionalidade; segundo o autor ela se faz contrária ao apetite e não se relacionando com o agradável e o doloroso. Ela não visa as coisas impossíveis, relaciona-se com os meios e não com os fins e não se identifica com a opinião. Para Aristóteles, a escolha somente pode ser caracterizada a partir do binômio bondade-maldade.

Como já citado, Aristóteles dedica dois livros à amizade (VIII e IX). Três seriam as razões: a philia é estruturalmente intrínseca à virtude e à felicidade; Sócrates e Platão já haviam analisado filosoficamente tal tema; e o fato da sociedade grega dava à amizade uma importância capital, diferente das sociedades modernas.

Três são as coisas que o homem ama, segundo Aristóteles, logo, três são as formas de amizade: pelo útil, prazer e bem. Os homens que amam em busca do útil, buscam um bem imediato, riquezas ou honras. Ama-se, não em vista do fim em si mesmo, mas como meio de adquirir vantagens. A forma em função do prazer é semelhante à forma de se amar pelo útil. Busca-se o prazer recíproco. A amizade é estável enquanto persistir este elo prazeroso. Estas duas espécies de amizade são acidentais. Quando uma das partes cessa de ser agradável ou útil, a outra deixa de amá-la. Na terceira forma, pelo bem, ama-se o outro por aquilo que ele é. Ama-se pela bondade. É a verdadeira forma de amizade e só é possível entre os amigos bom,s com senso de justiça e equidade. Esta forma de amizade não é muito freqüente. Ela exige tempo, familiaridade, um habitus, digna entre os amigos bons e virtuosos. E a phrónesis auxilia na escolha de amigos recíprocos.

Para Aristóteles o amigo é um outro eu, possibilidade de autoconhecimento. Conhecemo-nos olhando para o outro. Devido a nossa finitude, procuramos atingir à perfeição moral no espelhamento do outro. É um momento essencial da vida feliz e implica reconhecimento, bondade e reciprocidade, atingindo a expansão social do eu. Assim, a amizade também é um bem supremo, um valor que nos conduz à eudaimonia - vivência da plenitude humana, mediada com amigos bons e vida contemplativa.

No livro X da Ética a Nicômacos vemos o conceito de prazer e sua relação com as excelências do homem.

O cerne da teoria aristotélica é o de que o prazer não é algo a que possamos aspirar por ele mesmo, que são, muito mais, as respectivas atividades, aquilo a que aspiramos, e que o gozo é algo que então se acrescenta, mostrando que o que fazemos de bom grado decorre sem impedimento, não havendo oposição alguma entre virtude e felicidade. Para aquele que a pratica por ela mesma, também, e precisamente, a atividade virtuosa é uma atividade realizada com gozo. É dessa maneira que uma pessoa pode saber se esteve presente a disposição virtuosa em uma ação, pela quantidade de prazer ou desgosto que acompanha a ação. Se a pessoa não gosta de ser generosa, ou acha difícil ser comedida, não adquiriu a virtude, embora possa ter praticado uma ação virtuosa. Se, ao contrário, a pessoa se alegra com a prática da virtude em questão, então adquiriu aquela excelência especial. O prazer, nesse sentido, é a prova de um hábito formado.

Nos capítulos 3 e 4 do livro X, Aristóteles desenvolve algumas indicações interessantes sobre o caráter do prazer em relação ao equilíbrio e ao abandonar-se aos afetos daquele que não vive equilibradamente. Não apenas com referência aos prazeres corporais, mas também quanto aos sentimentos em todos os domínios da vida. Para ele o ser humano tem uma certa consciência do tempo:

Mas a forma do prazer é perfeita a cada momento. É claro, então que o prazer e o movimento diferem entre si, e que o prazer deve ser uma das coisas que são um todo e perfeitas. Esta conclusão também pode ser corroborada pelo fato de o movimento ocupar necessariamente um lapso de tempo, enquanto um sentimento de prazer não ocupa, pois cada momento de prazer é um todo perfeito.

O prazer nessa parte da ética lembra o conceito de tempo como duração que Bergson irá desenvolver muitos séculos depois. Esse prazer faz parte de um tempo “psicológico” que só pode ser satisfeito por uma felicidade que tenha uma certa constância e que não seja experimentado, como o prazer corporal, no instante e pelo contraste com a dor ou com a ausência de prazer.

Fonte: Texto parcial - Revista Diálogo Educacional - PUCPR

O Banquete, de Platão

Em O banquete, Platão define o amor como a junção de duas partes que se completam, constituindo um ser andrógino que, em seu caminhar giratório, perpetua a existência humana. Esse ser, que só existe no mundo das idéias platônico, confere à sua natureza e forma uma espécie peculiar de beleza: a beleza da completude, do todo indissociável, e não uma beleza que simplesmente imita a natureza. Assim, temos em Platão, uma concepção de belo que se afasta da interferência e da participação do juízo humano, ou seja, o homem tem uma atuação passiva no que concerne ao conceito de belo: não está sob sua responsabilidade o julgamento do que é ou não é belo. A dialética de Platão aponta para duas direções: o mundo das idéias, num plano superior, do conhecimento, que é, ao mesmo tempo, absoluto e estático; a outra direção segue para o mundo das coisas, dos humanos. Este, de aparência sensível, é constituído pela imitação de um ideal concebido no mundo das idéias: portanto, num processo de cópia. Gilles Deleuze aponta para uma terceira possibilidade que quebra a dicotomia platônica: a cópia fiel e o simulacro, não mais tido como degenerescência da semelhança ao mundo das idéias, um mero fantasma. Para os gregos, o belo artístico situava-se no embate entre as boas cópias e o simulacro.

O Banquete não pode ser considerado um diálogo; tende muito mais para um duelo no qual os participantes pretendem fazer, cada qual, o melhor discurso sobre a amizade. O início da obra lembra-nos outras de Platão: alguns estão em caminho para a cidade quando são interrompidos por outros e se colocam a discutir determinado assunto. Desta mesma forma acontece em A República (Sócrates e Glauco estão descendo do Pireu e terminam na casa de Céfalo) e no Fedro (Fedro, depois de ouvir Lísias, encontra Sócrates no caminho para a cidade e se colocam a debater o discurso retórico de Lísias). No Banquete, Apolodoro e seu Companheiro (a obra não revela o nome dele) estão indo de casa, em Falero, para a cidade quando são interrompidos por Glauco:

Recentemente, quando eu subia de casa, em Falero, para a cidade, um conhecido que me tinha visto por de trás, gritou de longe, em tom de brincadeira: Ó cidadão de Falero, de nome Apolodoro! Por que não esperas? Então, me detive para esperá-lo. E ele: Apolodoro, me falou, andava à tua procura, porque desejo obter informações precisas a respeito da conversa de Agatão com Sócrates, Alcibíades e os demais convivas do banquete dado por ele, em que proferiram vários discursos sobre o amor. Aristodemo havia estado presente no banquete no qual se deu a discussão a respeito da amizade. Esse contou o que ali se passara para Apolodoro e esse, por último, se empenha em relatar o acontecido na presença do seu Companheiro e de Glauco.

Assim como em A República, O Banquete tem lugar certo e público identificável: ocorreu na casa de Agatão, discípulo de Sócrates. Lá discursaram sobre o amor, ou sobre a amizade (philia), esses dois, além de Fedro, Pausânias, Erixímaco (o médico) e Aristófanes (o poeta).

O que realmente se passou na casa de Agatão começa a ser relatado por Apolodoro em 174a. Sócrates chega por último, quando todos já estavam acomodados e o banquete já havia se iniciado, estando pelo meio (cf. 175c). Frente ao banquete, Pausânias lembra que deveriam beber com moderação: faz referência ao dia anterior, no qual havia bebido exageradamente e ficado abalado fisicamente.

Os discursos sobre o amor iniciam com Fedro: "iniciou o seu discurso [Fedro] declarando que Eros era uma divindade poderosa e admirável, tanto entre os homens como entre os deuses, por várias razões, mas, antes de tudo, pelo nascimento." (178a) Fedro é o primeiro, e por isso pai do discurso, a falar sobre o deus Eros: ele condena o ofício dos poetas que têm por missão cantar hinos aos deuses mas se esquecem de Eros. Fedro, no seu discurso, faz a justificação moral de Eros, mas não investiga a fundo sua essência e suas formas. De qualquer forma, é devido à fala desse discípulo de Sócrates que toda a discussão se inicia. Com o intuito de elevar Eros, Fedro encerra seu discurso dizendo que esse é o deus mais antigo, mais respeitável e o mais "autorizado" (cf. 180b) a levar o homem à posse das virtudes e da felicidade, nesta vida e depois da morte!

Sucede Fedro no discurso em defesa de Eros outro discípulo, agora Pausânias: censura a falta de precisão do discurso anterior e tenta uma definição concreta. Para ele, existem dois tipos de Eros para os homens, um vulgar e repudiável, outro sendo uma força educadora.

O Eros usual e corrente, o instinto e irrefletido e vulgar, é vil e repudiável, porque tende à mera satisfação dos apetites sensuais; em contrapartida, o outro é de origem divina e o impulsiona o zelo de servir ao verdadeiro bem e à perfeição do amado. Este segundo Eros pretende ser uma força educadora, não só no sentido negativo de desviar os amantes das ações vis, o que o discurso de Fedro realça, mas também em toda a sua essência, como força que serve ao amigo e o ajuda a expandir a sua personalidade. (JAEGER, 2001, p. 727) O amor para Pausânias é sinônimo de liberdade para o homem. O amante faz coisas para o amado que escravo algum aceitaria fazer, tal como se jogar no chão ou se deitar na porta da moradia do amado. O amor é louvável, que denota a liberdade do indivíduo em fazer ou não determinadas coisas e, segundo Pausânias, é ratificado pelas leis, como ele mesmo nos diz:

O amante faz tudo isso [serviços para o amado] com certa graça, o que lhe é permitido pela liberdade de nossos costumes, sem incidir na menor censura de ninguém, como se se tratasse de um ato louvabilíssimo. E o mais de admirar é que, no dizer do povo, somente o amante obtém perdão dos deuses, em caso de perjuro. Não há juras de amor, dizem. Desse modo, tanto os deuses como os homens concedem plena liberdade a quem ama, o que nossas leis confirmam. As atitudes de quem ama não o faz parecer ridículo e, se em agressão aos deuses, é logo perdoado pela sua condição de amante. O amor aproxima o sujeito das virtudes.

Assim finda Pausânias e, de acordo com a disposição dos homens no banquete e da forma organizada que ia seguindo a discussão, seria a vez de Aristófanes. Mas esse se encontrava em soluços e passou a palavra para o próximo, Erixímaco. Em seguida, a vez de discursar voltaria para Aristófanes.

O médico Erixímaco propõe ao amigo em soluço três "remédios" para o problema:

1. Que prenda a respiração por um momento;

2. Se não resolver, que gargareje um pouco de água;

3. Se mesmo assim não resolver, que cheire algo que irrite o nariz. Assim, repetindo essa etapa por duas vezes, Erixímaco garante que o soluço, por mais forte que seja, passará.

É interessante observar a aplicação da medicina na época de Sócrates e de se perceber o interesse de um médico pela filosofia e pelas idéias de Sócrates.

O discurso de Erixímaco é aquele que transpassa o homem e atinge a natureza. Com a visão de um médico, visão naturalista, Eros aparece aqui como um deus poderoso, princípio e devir de todo o físico, "como potência criadora daquele amor primogênito que tudo anima e penetra, com o seu ritmo periódico de pleno e de vazio." (JAEGER, 2001, p. 730)

Erixímaco vê a existência de um Eros bom e um ruim. É o Eros bom que promove o bem-estar e a harmonia, estando em todas as esferas do cosmo e das artes humanas. Ele compara a medicina e a música: a primeira deve fazer existir a harmonia entre as forças físicas antagônicas e segunda deve combinar tons altos e baixos para formar uma sinfonia. A idéia de harmonia, tão presente em A República, aparece aqui novamente, até mesmo quando o médico grego diz que o homem deve sim consentir o prazer, mas não deve se deixar corromper por esse.

Findada a fala do médico Erixímaco, Aristófanes já tem por cessado o seu soluço e começa a expor o que tem a falar sobre o amor.

O discurso do poeta Aristófanes é menos extenso que o do Erixímaco, mas maior que o de Fedro. Percebe-se que a discussão vai avançando e se aproximando de definições mais claras para o que seria o amor, ou a amizade, ou Eros. Para Aristófanes, Eros é um anseio, uma busca metafísica do homem por uma totalidade do Ser, inacessível sempre à natureza do indivíduo. Uma das coisas que revela isso é a saudade dos amantes que desejam não se separar em tempo algum: não se trata somente de algo corporal, mas de algo que une as suas almas ou, dizendo de outra forma, complemento que uma alma busca na outra. Diz-nos Aristófanes:

Quando acontece encontrar alguém a sua metade verdadeira, de um ou de outro sexo, ficam ambos tomados de um sentimento maravilhoso de confiança, intimidade e amor, sem que se decidam a separar-se, por assim dizer, um só momento. Essas pessoas, que passam juntas a vida, são, precisamente, as que não sabem dizer o que uma espera da outra. [...] E a razão disso é que primitivamente era homogêneo. A saudade desse todo e o empenho de restabelecê-lo é o que denominamos amor. Não se deve esquecer que Aristófanes é poeta e apresenta uma visão mais romantizada da definição de Eros, de amor e amizade. Ele quer deixar evidente que não se trata de apenas uma conexão corporal, muito mais de essência e de complementaridade.

Não é, evidentemente, a união física que faz com que um sinta um prazer tão grande com a presença do outro e a ela aspire com tanta força, mas é indubitavelmente uma coisa diferente o que a alma de ambos quer, uma coisa que ela não pode exprimir e que só palpita nela como obscura intuição do que é a solução do enigma da sua vida.

Aristófanes termina seu discurso sobre o amor de forma belíssima, profetizando que o homem só terá uma vida feliz se tomado por Eros:

Falo em tese, tanto do homem como da mulher, para afirmar que nossa espécie só poderá ser feliz quando realizarmos plenamente a finalidade do amor e cada um de nós encontrar o seu verdadeiro amado, retornando, assim, à sua primeira natureza. Terminado Aristófanes, o leitor tem pela frente dois discursos: o de Agatão e Sócrates. Esses dois começam a discutir para saber quem vai falar primeiro. Sócrates não perde a oportunidade para lançar sua ironia: diz ter uma posição temerosa, falar sobre o amor depois do belo discurso que provavelmente Agatão proferirá. Fedro reorganiza o banquete (a ordem dos discursos) e coloca Agatão para discursar.

Diz ele ser necessário tratar primeiro da natureza do deus e para depois tratar de seus benefícios; Eros é o deus mais bem-aventurado, o mais belo e melhor. O discurso de Agatão é o menos psicológico, o menos relacionado com a alma. Ele limita-se a descrever Eros e suas características. Jaeger muito bem resume o discurso de Agatão sobre Eros:

Conforme Ágaton o descreve, Eros é o mais feliz, o mais formoso e o melhor de todos os deuses. É jovem, fino e delicado, e só mora em locais floridos e perfumados. Sobre ele nunca põe as mãos a coação, pois o seu reino é o da vontade pura e livre. Possui todas as virtudes: a justiça, a prudência, a bravura e a sabedoria. É um grande poeta e ensina os outros a sê-lo. Desde que Eros pisou o Olimpo, o trono dos deuses passou de terrífico a belo. Foi ele quem ensinou à maioria dos imortais as suas artes. E o entusiasta adorador do deus de Eros, hino capaz de competir com qualquer hino em verso, tanto pelo equilíbrio harmônico da composição como pela sonoridade musical.

O grande momento do Banquete, e talvez o mais esperado, é quando Sócrates passa a discursar sobre o amor. Para ele, ao contrário de Agatão, Eros não é o próprio belo, mas aspira-o, tem o desejo de possuir algo. Lembra que quem ama deseja possuir aquilo que ama.

Sócrates faz uso do mito de Diotima: segundo ele, em determinado tempo, havia perguntado à profetisa Diotima, de Mantinéia, coisas sobre Eros. Isso revela que o discurso de Sócrates aparece não como uma sabedoria dele, mas como uma verdade que ele desvendou. De acordo com esse mito, Eros é filho de Poros (riqueza) e de Penia (Pobreza). Isso coloca Eros em uma posição intermediária: ele não é nem feio e nem belo, nem participa da bem-aventurança, característica essencial da divindade. Eros é um ser duplo, herdado da diferença de seus pais, o que o coloca numa posição intermediária.

O Eros de Platão revelado por Sócrates no Banquete é o próprio filósofo: está na posição intermediária, entre o saber e a ignorância, é aquele que aspira algo. O Eros em Platão é a aspiração do ser humano ao bem.

O Eros socrático é o anseio de quem se sabe imperfeito por se formar espiritualmente a si próprio, com os olhos sempre fitos na Idéia. É, em rigor, o que Platão entende por "filosofia": a aspiração de conseguir modelar dentro do homem o verdadeiro Homem.

O discurso de Diotima, na fala de Sócrates, está na tradição grega e coloca na idéia de Eros toda a atividade de criação espiritual. Eros é um poder educador e que matem unido todo o cosmo espiritual, isso porque ele é a aspiração comum a todo homem de buscar e se apossar por completo do belo.

Recordemos que Diotima definia acima a essência do Eros como a aspiração a apropriar-se 'para sempre' do Bem. [...] o Bem constitui o amor humano de si próprio, no seu mais alto sentido, então é evidente que o objeto sobre o qual ele recai, o eternamente belo e bom, não pode ser senão a substância deste mesmo eu.

Banquete encerra com a chegada de Alcibíades e seu bando: todos bêbados. Alcibíades põe fim aos louvores a Eros e inicia elogios a Sócrates. A passagem final de Banquete pode ser despercebida em uma leitura corrente, mas é de grande significado. Com o encerramento das honrarias a Eros e o início dos elogios a Sócrates, esse encarna o próprio Eros, ou seja, encarna a filosofia. Se não bastasse, Alcibíades anuncia ter grande amor por Sócrates: como pode um jovem de beleza exuberante fazer elogios e anunciar o seu amor (philia) a um velho tão desfeito como Sócrates? Insere-se aí a valoração da filosofia e um novo valor: a beleza interior superior à beleza exterior, perecível.

O Banquete trata da amizade, do amor e é um dos diálogos de Platão da categoria política. Mas como a discussão sobre a amizade pode inserir essa obra na problemática política?

Para Platão, a amizade é uma força educadora e nexo que mantém o Estado. A amizade é "forma fundamental de toda comunidade humana que não seja puramente natural, mas sim uma comunidade espiritual e ética. " Não é possível existir uma comunidade que não seja baseada na amizade, pois essa tende para aquilo que é o bem e este une os homens. O bem é aquilo que é supremo, está impresso na alma, é o primeiro amado, aquilo que permite a admiração pelas demais coisas, em outras palavras, antes de tudo vem o bem, para o qual o ser humano deve voltar-se, aquilo que tudo une, ente unificador.

Depois de tantas exposições a respeito de Eros no Banquete, começando por Fedro, depois Pausânias, Erixímaco, Aristófanes e Agatão, Sócrates bem o caracteriza, como compêndio da aspiração humana ao bem.

Ao contrário do que diziam seus discípulos, a amizade (ou amor, representado pelo deus Eros) não é o próprio belo e próprio bem. Eros é originado de duas oposições, filho da riqueza e da beleza. Isso o coloca numa situação intermediária, não fazendo estar de nenhum lado oposto e extremo. A posição intermediária de Eros atribui-lhe movimento, sendo o mesmo movimento do homem em busca do bem supremo.

O bem é o que há de mais supremo, é o divino, como Platão expressa literalmente em A República e no próprio Banquete. É a forma unificadora, é o que harmoniza e unifica o cosmos e o homem; é o que todo ser humano deve buscar.

Toda forma de sociedade deve se voltar também para o bem e essa busca do bem, do supremo e divino, Platão a caracteriza como amizade, como Eros.

Por isso dizemos que Eros (philia, amor e amizade) é movimento, a busca incessante do homem pelo bem e que tanto o homem quanto a sociedade não pode existir sem esse movimento em direção ao que o bom e belo.